Pular para o conteúdo principal

FUNDAMENTAL É MESMO O AMOR






Flávio está no trem em direção a Central do Brasil. De pé, ele olha a paisagem da zona norte que o percurso da linha oferece. Pessoas que por ele passam reclamam da sua prancha que ocupa um espaço disputadíssimo dentro do vagão. Ele pensa no mar, e principalmente nas possibilidades que pode dar à sua vida, caso ganhe o torneio de surf da praia da Macumba. Seus sonhos são interrompidos com a chegada do ponto final. Com sua prancha, Flávio atravessa a Central do Brasil em direção ao ponto de ônibus que o leva a zona sul da cidade.

**
Ana sai do banheiro enrolada em uma toalha e se despe em frente ao espelho do seu quarto. Pega o biquini em cima da cama e o veste cuidadosamente, colocando logo em seguida um short branco quase que totalmente transparente. Depois de colocá-lo observa sua tatuagem de dragão na coxa e vira seu corpo visualizando sua tatuagem nas costas. Passa o protetor solar sobre o seu corpo e quando termina vai a sua janela olhar o mar da praia do Leblon. Depois de observar o sol e o movimento da rua,fecha a janela e sai do seu quarto pegando uma bolsa e seu celular.

**
Flávio crava sua prancha de surf na areia e senta ao lado, observando Ana sair do mar do Leblon sacudindo seus longos cabelos lisos. Ana se aproxima de Flávio e ele levanta para logo em seguida beijá-la. Ana estende sua canga na areia e senta ao lado de Flávio, os dois contemplam o mar por uns minutos.
- Se não fosse o mar a gente jamais se conheceria, né Ana? O mar não faz distinção de classe, diferente do porteiro do seu prédio.

- Deixa de drama Flávio! quem vê assim você é algum marginal. Você é meu namorado... E aí? Não vai cair no mar pra treinar um pouco?
- Claro, não trouxe essa prancha à toa né? O mar aqui é fraco mas dá pra brincar um pouco. Assim fico em forma para o torneio.
Ana observa Flávio correndo em direção ao mar com sua prancha. Ela fica por um longo tempo olhando seu namorado deslizar sobre o mar. As ondas, embora pequenas, ajudavam Flávio a fazer um pequeno balé nas águas frias do Leblon. Ana se sentia relaxada ao ver o mar. Desde que se mudara da Bartolomeu Mitre para a Delfim Moreira, não tinha um dia em que, ao acordar, contemplava o mar antes de fazer qualquer coisa. O mar a relaxava e a fazia pensar de maneira mais clara. Através dele se apaixonou por um menino da baixada, nele viu Flávio ser desclassificado de um torneio de surf ao quebrar a prancha no meio de uma bateria. No mar também surfava, mas por hobby não para competições. Era nele que Ana confiava para fazer desviar seus pensamentos ruins e tornar a ter a mente sã para tomar qualquer decisão. O mar a tirava do mundo.
- Ana?
Flávio está na frente de Ana, que se assusta.
- Caraca Flávio, avisa.
- Ué garota! Você que tá em marte. Olha só, eu vou me encontrar com a turma de salva vidas lá no posto dez. Posso deixar minha prancha no seu ap?

- Pode sim. Aliás, você podia deixar aqui definitivo ou ainda vai apanhar no trem. Eu quero meu surfista inteiro.
- Você não quer ir?
- Não obrigado, seus amigos são demais pra mim.
- Mas são meus amigos. Pior seria um almoço no seu apartamento com tudo cronometrado, até latido de cachorro.
Ana ri ironicamente.
- Vai logo Flávio, mas amanhã vamos ao cinema tá?
Os dois se Beijam e Ana carrega a prancha para seu apartamento e Flávio caminha pelo mar até o posto dez em Ipanema.

**
Flávio e Ana haviam feito uma promessa que passariam juntos a virada do ano não importando com nada que seus pais e ou amigos falassem. Cumprida a promessa (Ana recusou passar a virada em um luxuoso apartamento da avenida atlântica e Flávio recusou o convite dos amigos para um reveilon no bairro onde mora) estão os dois na praia de Copacabana nas intermediações do posto cinco. Estão abraçados e caminham lentamente pela orla.
- Vamos fazer os pedidos Flávio, já está quase na hora. Quero ver os fogos. Não vai pedir nada?
Flávio observa bem nos olhos de Ana. O verde deles ficavam ainda mais resplandecentes no ambiente pseudo noir daquela hora. O que fazia sua namorada ter um ar ainda mais cativante naquele momento.
- Oi! Acorda Flávio. A competição é no começo de fevereiro não vai pedir nada?
- Pisa no mar Ana, vai.
Ana obedece e fica na beira do mar de Copacabana.
- Dois desejos realizados.

Ana caminha em direção a Flávio e os dois se abraçam forte. Eles se beijam sincronizados com os fogos que anuciam o novo ano.

**
Aquela manhã a praia da macumba amanheceu com um forte sol e ondas violentas. Um dia ideal para a competição do circuito Surf de verão da cidade do Rio de Janeiro. A praia lotada era palco para o mais importante torneio da cidade maravilhosa. Flávio está ao lado da sua prancha, cravada na areia, sentado e bastante concentrado. Um ritual que sempre fazia antes de entrar no mar. Não falava com ninguém e pedia sempre para Ana o observar bem distante.
Pensava sempre nos seus amigos da baixada fluminense que tentaram e não conseguiram estar no seu lugar. Pensava nos olhos verdes de Ana como uma inspiração fundamental para lhe acalmar. Pensava em sua avó que lhe dizia sempre para pedir a Iemanjá permissão para entrar no mar. E ele sempre pedia. Carregava ali todas as suas forças e não perdia a fé nem um minuto em seus orixás. Não queria vencer o mar e sabia que por mais preparado que estivesse qualquer desrespeito, a derrota seria iminente. Aprendera a agradecer até as derrotas, afinal seu fracasso no ano anterior o fez conhecer sua grande paixão. Flávio retirou a prancha da areia e a carregou indo em direção ao verde mar da Macumba, a cor dos olhos de Ana.

**
Ana sabia decoradas todas as superstições do namorado antes de entrar no mar. Respeitava-as. Mas ficava com vontade de pular algumas regras, como abraçá-lo antes de entrar na bateria para competir. Ficava ali o admirando de longe e ajustava o binóculo conforme Flávio se movimentava em direção ao mar. Admirava a maneira como ele levava a sério tudo o que fazia, bem como, a forma que enfrentava a família dela ao ser questionado do que queria da vida. Sempre dizia que queria viver do mar. Falava com tanta convicção que conseguia convencer, a todos, que era obstinado o suficiente para ser qualquer coisa da vida. Ana sabia que Flávio tinha um respeito diferente pelo mar e sabia também que gostava ainda mais dela por compartilhar da mesma opinião.
 E de longe, Ana continuava admirando-o, equilibrando-se nas ondas e com sua pele negra refletindo o sol de quarenta graus daquela manhã. Conseguia ver e até sentir o esforço que ele fazia para tirar da onda a melhor manobra. Havia estilos de vidas diferentes, questões sociais e raciais a serem vencidas, mas Ana tinha certeza que venceriam. Assim como Flávio vencia com amor cada onda, os obstáculos do casal seriam vencidos como prova de que na vida, fundamental é mesmo o amor.

FIM


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

OS BONS COMPANHEIROS DE MARTIN SCORSESE

OS BONS COMPANHEIROS (Goodfellas, 1990) De Martin Scorsese SINOPSE: Garoto do Brooklyn, Nova York, que sempre sonhou ser gângster, começa sua "carreira" aos 11 anos e se torna protegido de um mafioso em ascensão. Sendo tratado como filho por mais de vinte anos, envolve-se através do tempo em golpes cada vez maiores. Neste período acaba se casando, mas tem uma amante, que visita regularmente. Não consegue ser um membro efetivo, pois seu pai era irlandês, mas no auge do prestígio se envolve com o tráfico de drogas e ganha muito dinheiro, além de participar de grandes roubos, mas seu destino estava traçado, pois estava na mira dos agentes federais 1 . ANÁLISE DO FILME: Baseado no bestseller de Nicholas Pileggi "Wiseguy", que conta à vida do contraventor Henry Hill, "Os Bons Companheiros" é um projeto pessoal do diretor Martin Scorsese. O filme vai funcionar como um resumo de tudo o que o estilo "Scorsesiano" traz de

POEMA COGITO DE TORQUATO NETO

UM POEMA QUE ME FEZ LEMBRAR Ao encontrar e ler , de Torquato Neto o poema Cogito ,na mesma hora esqueci do que realmente procurava... Poesia tem dessas coisas: lemos, absorvemos e ficamos pensando no que poderia ter feito ou sentido o poeta para se expor tão a fundo, e adentrar em nossas mentes e fazer o tempo voltar como uma espiral... Torquato pertence ao grupo de poetas que viveram pouco (apenas 28 anos), deixaram uma obra curta e nem por isso fizeram mal uso das palavras nos poucos anos que tiveram para criar. Ele também pertence ao grupo de poetas suicidas , um dia após completar 28 anos de idade (Ele nasceu em Teresina, Piauí, em 09 de Novembro de 1944), ligou o gás do banheiro e suicidou-se. Deixou um bilhete: "Tenho saudade, como os cariocas, do dia em que sentia e achava que era dia de cego. De modo que fico sossegado por aqui mesmo, enquanto durar. Pra mim, chega! Não sacudam demais o Thiago, que ele pode acordar"( Thiago era o filho de três anos

SEU ISAIAS E O FIM DO MUNDO

  Baseado em uma história real.       Capítulo I – A rua dos castrados.   Não há quem se lembre, ou que pelo menos tenham dito: em qualquer esquina, bar ou banco de praça. A cidade é muda e sem memória. Um baú de relicários esquecidos... O fato é que na década de cinquenta, essa cidade (que aqui não terá nome) tinha uma rua de homens castrados. Envoltos em luto e vergonha. Eram homens que se aventuraram em seduzir e prostituir meninas, adolescentes; onde quase sempre acabavam grávidas e se viam vingadas por um grupo denominado “justiceiros de Deus”. Os Justiceiros de Deus eram todos devotos da Igreja católica, mais precisamente frequentadores da Catedral Metropolitana da cidade, e assíduos trabalhadores da pastoral. Dizimistas, organizadores de festas, quermesses e toda ou qualquer organização que envolvesse a Igreja na cidade. Eram em sete, todos com mais de quarenta anos e casados. Uns pais, outros até avós, e agiam com total ratificação de suas esposas. Dizem, e nã